4.20.2010

A Santa Dionisíaca

O livro Cacilda Becker - Fúria Santa de Luis André do Prado, publicado em 2002 pela Geração Editorial, apresenta a trajetória de uma das principais atrizes brasileiras. Nascida no interior de São Paulo, filha de alemães, Cacilda Yaconis Becker, a Cidinha, teve uma infância miserável, filha primogênita, ajudou a mãe a criar e educar as irmãs Dulce e Cleide Yaconis Becker.
 
Talentosa, curiosa e autêntica os dons artísticos se manifestaram logo no início da adolescência. Carismática e visceral, Cacilda subiu no palco pela primeira vez aos dez anos de idade numa apresentação escolar, onde dançou "A Dança do ritual do fogo" a partir de movimentos improvisados e impulsionados pela música e seus sentimentos a atriz, então bailarina, durante a adolescência foi considerada a Isadora Duncan brasileira, tendo sua performance comparada ao da bailarina contemporânea alemã Mary Wigman - que ao lado de Rudolph Laban preconizou a dança contemporânea na década de 1940.
 
Fazendo como palco as praias do litoral santista, clubes e festas da burguesia paulista, Cacilda foi aos poucos sendo inserida à elite intelectual, conquistando espaço até que chegasse aos palcos da metrópole como atriz. 
 
A biografia apresenta a trajetória da atriz em dezenove capítulos, com um texto de abertura assinado por Alberto Guzik e o epílogo de Carlos Drummond. Logo nas primeiras páginas o leitor é seduzido pelo texto impecável de Guzik: "Ela fez parte de uma geração de titãs". Contudo, é no poema de Drummond que é sublimado o brilho da principal atriz brasileira "morreram Cacilda Becker. Não era uma só, eram tantas". A arte da capa, a diagramação do texto, as fotos e o papel fosco envolvem o leitor-espectador na história, no universo de sedução, dor, glamour e amores.
Para além da trajetória pessoal de Cacilda, a obra de Luís André do Prado apresenta a história do teatro brasileiro entrelaçada com o desenvolvimento da imprensa brasileira, permeados pela transição do cenário político e cultural brasileiro. Com uma rica pesquisa bibliográfica, iconográfica, a narrativa é construída a partir de depoimentos e entrevistas de pessoas próximas a atriz.
 
Se, ‘o importante é o biógrafo não se prender apenas a fatos, mas usá-los a serviço da construção da personagem. Ao preencher lacunas na vida do biografado, a ficção entra como “uma interpretação baseada em documentos, criando pontes metafóricas", a obra de Luís André Prado traz ao leitor um rico compêndio de relatos historiográficos e apuração jornalística realizado durante sete anos. O autor possibilita ao leitor uma compreensão histórica para além dos palcos, dos gestos da atriz, mas, sobretudo insere o leitor no universo mágico e polifônico da criação e vivência teatral de Cacilda.
 
A obra é construída num ciclo-ritual do morrer-nascer-morrer. A partir de relatos do filho, do ex-marido, público e amigo a cena da morte da atriz é reconstituída. A narrativa em primeira pessoa aproxima e seduz o leitor que aos poucos se emociona e se surpreende. Sendo o ofício de ator compreendido como um eterno nascer-morrer, a criação artística, o pisar no palco e a busca por um gesto poético fizeram de Cacilda uma legítima sacerdotisa de Dionísio, atriz da arte do êxtase, onde nada era ou foi estático e sim, a arte, o teatro, a dança se apresentavam como expressão da vida: movimento e transformação.
 
A atriz que primeiro se revelou, ainda adolescente, como bailarina da dança improvisada, sentida, muda e calada, viu no teatro a possibilidade de se expressar, ter e ganhar voz sua visceralidade, sua força e, sobretudo, sua sobrevivência. Nos palcos paulistas participou das montagens que mudaram a história do teatro brasileiro. Enquanto, nos anos 1960, o Teatro Arena e Teatro Oficina lutavam por um teatro político e engajado, Cacilda defendia a arte pela arte, o teatro como fonte de fuga e prazer inesgotável para o espectador sem, contudo, se isentar das lutas políticas da época.
 
Cacilda Becker – Fúria Santa é um livro para todos os públicos e meios sociais, contudo, atores, pesquisadores teatrais e comunicadores das artes devem lê-lo com os olhos curiosos e atentos às narrativas que constroem o cenário das artes-cênicas contemporânea brasileira.

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